Sobre juiz-Deus, distorções judiciais e coragem

Sobre juiz-Deus, distorções judiciais e coragem

Publicado por Vitor Guglinski -


Tem repercutido bastante nos meios de comunicação e nas redes sociais o caso protagonizado pelo juiz de direito do TJRJ, João Carlos de Souza Correa, e a agente da Lei Seca, Luciana Silva Tamburini.

Em 2011, o juiz foi parado numa blitz da Lei Seca no Rio de Janeiro, ocasião em que não portava CNH, e seu veículo estava sem placas e sem documentos. A referida agente, então, o autuou, informando que seu carro seria rebocado. Ante a situação, o condutor se identificou como magistrado. Diante disso, segundo noticiado, a moça disse que “ele é juiz, mas não é Deus”. Houve discussão verbal entre as partes, tendo o magistrado dado voz de prisão à agente.

O caso foi parar na 14ª DP (Leblon), e culminou no ajuizamento de uma ação reparatória por danos morais por parte de Luciana contra o juiz. Contudo, ao final ela é que foi condenada a indenizá-lo em R$5 mil, por dano moral. Tanto o juízo monocrático da 36ª Vara Cível do Rio de Janeiro quanto o de segunda instância (14ª Câmara Cível do TJRJ) entenderam que a agente de trânsito foi quem agiu com abuso de poder, ofendendo não só o juiz, mas a magistratura como um todo.

Pois bem, embora deva-se respeitar as decisões proferidas no caso em questão, por serem frutos de exercício legítimo da jurisdição, tais atos não deixam de merecer críticas.

Em primeiro lugar, chama a atenção o fato de o magistrado ter revelado à agente da Lei Seca, durante a abordagem, que desconhecia o prazo de 15 dias, previsto em lei, para o emplacamento de veículos novos, conforme art. 4º, I, da Resolução 04/98 do CONTRAN (alterada pela Resolução 269/08, também do CONTRAN). Ora, uma norma tão basilar, que disciplina algo prático, corriqueiro, era de desconhecimento do magistrado? Onde fica a máxima iura novit curia? Como ele julgaria determinado jurisdicionado que tivesse envolvido em caso semelhante? Preocupante, não?!

Em segundo lugar, causa tremendo espanto o reconhecimento de duas instâncias judiciais, no sentido de que, por cumprir a lei, a agente da Lei Seca ofendeu não só o juiz, mas toda a magistratura. Nesse ponto, parece-nos absurda a conclusão, pois soa sobremaneira ilógico entender que o cumprimento da lei seja tomado como ofensa exatamente - por quem? - pelos guardiões da lei e da ordem!

Em terceiro lugar, seja qual for o ponto de vista adotado, a agente da Lei Seca somente disse a verdade o tempo todo. Senão, veja-se.

Se for considerado que Deus existe, afirmar que juiz não é Deus é algo irrefutável, pois ele não é mesmo. Se a existência de Deus é o pressuposto da existência de tudo que há no universo, Deus precede a tudo e a todos, incluindo, por óbvio, o juiz.

Noutro giro, se considerarmos que Deus não existe, também não há ofensa alguma, pois, ao se afirmar que “juiz não é Deus”, estar-se-á a dizer que juiz NÃO É uma coisa que não existe. Ora, se ele (juiz) NÃO É o inexistente, ele só pode ser o existente, sendo que juízes existem de fato!

Daí, conclui-se que não houve, in casu, nenhuma ofensa moral, pois a verdade não deve ofender ninguém.

Lado outro, caso seja considerado que a “ofensa” foi institucional, certamente não é o magistrado em questão parte legítima para pleitear verba reparatória.

Cumpre esclarecer que a Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (AMAERJ) se manifestou no sentido de que juiz não tem privilégios em blitz (leia em: http://www.conjur.com.br/2014-nov-07/juiz-nao-privilegios-blitz-associacao-magistrados). Eis um trecho da nota:

Diante da repercussão exacerbada do caso envolvendo um magistrado e uma agente pública da Lei Seca, a Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (Amaerj) vem a público esclarecer que tem informado a todos os veículos de comunicação, que qualquer autoridade — seja do Poder Executivo, Legislativo ou Judiciário — que seja parada na Lei Seca, deve se comportar como qualquer cidadão.

Bem assim, depreende-se que a referida associação de classe nada mais fez do que corroborar a afirmação da agente da Lei Seca, ou seja, que juiz não é Deus; é, sim, um cidadão. Será que a AMAERJ também merece ser processada?

Prossegue-se.

O Poder Judiciário é instituição vital ao bom funcionamento de qualquer sociedade, e a função de julgar existe desde as suas formas mais rudimentares e informais até as mais avançadas e institucionalizadas.

O ser humano é passível de falhas, porquanto é de sua essência, fato que é objeto de estudos tanto no campo científico quanto no religioso, e pode ser que nunca seja possível encontrar uma resposta satisfatória para os comportamentos humanos.

Com vistas nisso, a lei foi o instrumento de referência desenvolvido pelo homem para tentar estabelecer comportamentos uniformes, baseando-se no chamado homem médio, ou seja, aquele dotado do mínimo ético desejável pela maioria de seus pares para o convívio harmonioso em sociedade, sendo que essa probidade básica varia conforme a cultura de cada povo. Porém, sempre objetiva-se o bem.

Para integrar a magistratura, exige-se conhecimentos jurídicos, cultura geral mais ampla possível e um comprometimento ético e moral verdadeiramente extraordinários do candidato. Os concursos têm se tornado cada vez mais rigorosos, sendo que o CNJ, através da Resolução nº 75/2009, aumentou o rol de conhecimentos que devem ser dominados pelos candidatos ao cargo de juiz, e que vão além das matérias ditas técnicas. São elas: Sociologia do Direito, Psicologia Judiciária, Ética e Estatuto Jurídico da Magistratura Nacional, Filosofia do Direito e Teoria Geral do Direito e da Política. Dessa forma, o CNJ espera contar com juízes mais aprimorados, tanto do ponto de vista técnico quanto do humano.

A gravidade da conduta desviada de alguns juízes reside no fato de que, por serem conhecedores de todo o sistema jurídico (iura novit curia), de seus detalhes, do que é proibido e permitido, ao menos presumidamente, é que devem proceder do modo mais reto possível. Exatamente por esse fato é que os magistrados, quando agem em desconformidade com as normas jurídicas e com os preceitos éticos e morais que devem governar a vida em sociedade, são merecedores de punições muito mais severas do que a pessoa leiga em matéria jurídica (e deveria ser com reduzidíssimo número de recursos, registre-se). Fazendo-se uma analogia (já que sou consumerista), é como no Direito do Consumidor, em que este é a parte vulnerável, uma vez que o fornecedor é quem conhece os meios de produção, a tecnologia que envolve o desenvolvimento de um produto ou de um serviço, o sistema de distribuição no mercado etc.

No caso dos juízes, toda a sociedade fica vulnerável quando um magistrado ou um órgão colegiado falham. Mais ainda se falharem dolosamente, transitando (se me permitem o trocadilho) pelas raias da ilegalidade.

Sobre isso, já foi escrito pelo filósofo Omar Khayyám, em sua obra Rubáyát:

"Não deixes teu saber magoar os outros,

vence-te, e a tua cólera, também

e terás paz, se em te ferindo a sorte tu gargalhares – sem ferir ninguém."

Ou seja, o sábio poeta diz nada menos que: não utilize sua sabedoria para o mal!

A frequência dos casos envolvendo desvios de conduta de magistrados nos dá a impressão de aparente isolamento. No entanto, mesmo que sejam casos pontuais, penso que a lição de Piero Calamandrei se aplica analogicamente:

"O bom juiz põe o mesmo escrúpulo no julgamento de todas as causas, por mais humildes que sejam. É que sabe que não há grandes e pequenas causas, visto a injustiça não ser como aqueles venenos a respeito dos quais certa medicina afirma que, tomadas em grandes doses, matam, mas tomadas em doses pequenas, curam. A injustiça envenena, mesmo em doses homeopáticas."

Dito isso, ainda que as famosas “carteiradas” ocorram em casos isolados, sempre contaminarão a magistratura enquanto instituição.

Vale transcrever, ainda, a lição Aristóteles, imortalizada em sua obra Ética a Nicômacos:

"As coisas que temos de aprender antes de fazer, aprendemo-las fazendo-as – por exemplo, os homens se tornam construtores construindo, e se tornam citaristas tocando cítara, da mesma forma, tornamo-nos justos praticando atos justos, moderados agindo moderadamente, e corajosos agindo corajosamente."

O problema, na verdade, orbita a esfera íntima do indivíduo; é problema de "diálogo com o próprio travesseiro", se é que o leitor me entende. A questão não é o juiz agir mal por ser conhecedor de uma estrutura corporativaista que o protege, por saber que dificilmente será apanhado com a boca na botija, que não será punido, mas fazer o certo pelo fato de ser um depositário da confiança da sociedade e de seu país, e, acima de tudo, por uma questão de fé, por desejar viver "de forma que, quando morrermos, até o agente funerário sinta saudades", nos dizeres de Mark Twain.

Por fim, não sei se Luciana Tamburini leu Ética a Nicômacos, mas ela agiu corajosamente.



Vitor Guglinski

Advogado. Colaborador do site JusBrasil/Atualidades do Direito.



Advogado. Pós-graduado com especialização em Direito do Consumidor. Membro correspondente do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON). Ex-assessor jurídico da 2ª Vara Cível de Juiz de Fora (MG). Autor colaborador dos principais periódicos jurídicos especializados do país.

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