Crise gera tensão na Uerj e leva o reitor a fechar a universidade

Crise gera tensão na Uerj e leva o reitor a fechar a universidade

Carência faz campus reviver jornadas de 2013 em meio ao atraso nos salários dos funcionários terceirizados

POR CHICO OTAVIO E RAPHAEL KAPA
23/05/2015 6:00 / ATUALIZADO 23/05/2015 8:46



Reitor suspendeu todas as atividades na universidade por medo de protestos violentos no campus - Gustavo Stephan / GUSTAVO STEPHAN



RIO — “Acabou o amor. Isso aqui vai virar um inferno”. O grito dos estudantes, concentrados na terça-feira no saguão de entrada da reitoria da Uerj, no Maracanã, anunciava a reedição dos conflitos da semana anterior, quando um protesto semelhante, com tentativa de invasão, terminou com uma porta destruída e cinco seguranças feridos. Desta vez, porém, o inferno prometido não aconteceu. Os manifestantes, muitos deles militantes de siglas como o Movimento Estudantil Popular Revolucionário (MEPR), foram desencorajados por um batalhão de seguranças parrudos, vestidos de preto, que fizeram uma barreira humana entre os estudantes e o corredor que leva à sala do professor Ricardo Vieiralves, o reitor.

— Isso aqui não vai virar um inferno. Mas vamos ter de enfrentar na base do conhecimento, da formação, do diálogo e da proteção do patrimônio. O espírito da universidade não será destruído. Não há espaço para fascismos. Nós, antes de tudo, somos educadores — reagiu Vieiralves.

Mesmo que os estudantes conseguissem vencer a segurança, seriam detidos por uma porta blindada, com cinco centímetros de espessura, que representa a última barreira entre os gritos de protesto e o gabinete do reitor, no fim do corredor. Foi ali, isolado da comunidade acadêmica, constrangido pela escalada de manifestações contra o atraso no pagamento dos funcionários terceirizados da instituição, que Vieiralves capitulou na quinta-feira. Em comunicado divulgado no fim do dia, motivado pelo medo, ele anunciou o fechamento da Uerj, ontem, para evitar “mais cenas de barbárie e violência”. O reitor queria impedir uma “sexta-feira violenta”.

Estudantes fazem manifestação após assembleia na universidade - Gustavo Stephan / Agência O Globo

O fechamento da Uerj, a oitava maior universidade pública do Brasil, levou a crise que se arrasta desde o fim do ano passado, quando os salários dos terceirizados começaram a atrasar, ao seu ponto mais agudo. O estado de indigência, representado pelas cestas abarrotadas de lixo nos banheiros, incendiou salas de aula e corredores do campus Maracanã, transformado em praça de guerra por grupos de alunos que se autodenominam coletivos e são movidos pela mesma motivação difusa que incendiou as ruas do país nas jornadas de junho de 2013.

— A Uerj é uma universidade popular. Hoje, é um reflexo do cenário político e social dos protestos de 2013. Muitas vezes, os alunos querem transformar as aulas em assembleias. Tento acomodar dentro da ementa, mas no final a professora sou eu — relata Lia Rocha, professora de Sociologia e dirigente da Associação dos Docentes da Uerj (Asduerj).

A sala 9.010, onde Lia leciona para duas turmas da graduação (uma delas, de 60 estudantes, não cabe ali se todos comparecerem), dá a medida da temperatura do campus. No canto próximo à porta, jaz uma pilha de carteiras em mau estado. As paredes estão cobertas de cartazes, efeito da última aula-assembleia puxada pelos alunos sobre a questão racial, um dos temas da disciplina. “Por que a farinha é ‘Dona Benta’ se a cozinheira é Anastácia?” e “Somos a quinta e sexta geração (sic) pós fim da escravidão” eram algumas das frases espalhadas pela sala.

Alunos criaram barricada na entrada da sala de aula - Foto do leitor

A crise na Uerj não se restringe ao problema dos terceirizados. Estudantes reclamam do atraso da remuneração das bolsas acadêmicas. Orgulhosa por ser a primeira a possuir cotas raciais, a instituição também parou de fornecer assistência aos contemplados pelo benefício este ano. Outra questão apontada pelos estudantes é a redução no número de ofertas de disciplinas neste semestre, o que atrasou o término da faculdade de alguns. Estas demandas são vistas pela Asduerj como o resultado de um problema histórico, que foi potencializado pela crise econômica e pelo isolamento do reitor.

— A Uerj não possui verbas suficientes para se manter. A Constituição Estadual garante o repasse de 6% da arrecadação líquida do estado, mas o governo só transfere 3,6%. O buraco é de R$ 875 milhões anuais. Além disso, a reitoria não dialoga com a comunidade. Ano passado, deveria ter convocado 12 reuniões do Conselho Universitário, mas só fez cinco. Na última deste ano, em plena crise, o reitor encerrou a reunião sem responder as perguntas da comunidade — afirma Bruno Deusdará, presidente da Asduerj.

O agravamento da crise produziu um conflito interno que não se via há tempos no Maracanã. Na terça-feira, em assembleia chamada pelos alunos da Geografia, um dos cursos mais politizados, a maioria das intervenções atacou a posição do Diretório Central dos Estudantes (DCE). Alinhado ao PT e ao PC do B, o DCE foi chamado de pelego e governista. O Centro Acadêmico da Geografia, dominado pelos independentes e reforçado por quadros do PSTU e PSOL, queria aprovar uma agenda de manifestações para pressionar a reitoria, mas a assembleia foi invadida pelos alunos de História, que tinham acabado de aprovar uma paralisação no curso — no dia seguinte, montariam barricadas nas portas das salas de aula. Atônitos, os dirigentes da assembleia viram o encontro ser encerrado sem deliberações, enquanto um numeroso grupo, mais exaltado, descia para uma nova tentativa de invasão da reitoria, o inferno prometido pelas palavras de ordem.

Por trás das ações mais radicais, está o Movimento Estudantil Popular Revolucionário (MEPR). É dele, por exemplo, a iniciativa de espalhar cartazes pelos corredores da Uerj pedindo a libertação de Igor Mendes, estudante de Geografia preso desde dezembro do ano passado no Complexo de Bangu, sob a acusação de formação de quadrilha armada e atos violentos nas manifestações. Para seus militantes, Igor é um mártir em defesa da liberdade. “Rebelar-se é justo”, defende um dos slogans prediletos.

— Com esses coletivos, não negocio. É um mundo diferente, com um discurso à esquerda que abomina a diferença. São pedaços de vários pensamentos: leninista, trotskista, maoísta. Não há com quem conversar. Como não tem liderança, todo mundo entra em disputa. É bélico. No final, fica uma geleia — critica Vieiralves.

Perto de encerrar o segundo mandato (dezembro deste ano), o professor de Psicologia Ricardo Vieiralves, de 55 anos, exibe sinais de esgotamento. Voltou a fumar intensamente — em menos de duas horas de conversa com os repórteres, foram quatro cigarros — e trabalha num bunker, protegido por duas barreiras de seguranças e a porta blindada. Embora garanta que circule “com tranquilidade” no campus, alunos e professores nunca mais o viram pelos corredores. O reitor admite que há “um medo estabelecido dentro de casa”, razão pela qual resolveu fechar ontem as portas da instituição para os seus 27 mil estudantes (40% deles cotistas), 3.600 professores e 6.500 técnicos administrativos — não há um número oficial sobre a quantidade de trabalhadores terceirizados.

O futuro da Uerj é uma incerteza. O reitor reclama da falta de autonomia financeira mas afirma que os motivos que desencadearam as manifestações já foram resolvidos. Ele garantiu que os salários dos terceirizados já foram pagos e estão em dia. Em nota, a Secretaria de Fazenda informa que “as demandas da Uerj estão sendo atendidas, dentro das possibilidades”. Mas a escalada de protestos não parece recuar. Na quinta-feira, professores entregaram uma pauta de reivindicações ao chefe de Gabinete do governador Pezão, Afonso Monerat, em ato no Palácio Guanabara. Alunos prometem nova rodada de agitações. Uma certeza, Vieiralves tem:

— Encerrando o mandato, vou me retirar. Não apoiarei nenhum candidato para minha sucessão. Quero editar livros.

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