Como o diabo ficou vermelho e ganhou chifres?

Como o diabo ficou vermelho e ganhou chifres?

Originalmente retratado em azul e sem traços animais, a imagem do diabo é um reflexo dos tempos, uma metáfora desenvolvida por cristãos ao longo dos séculos para representar o mal de cada época.

Da BBC/G1 09/05/2016 08h15 - Atualizado em 09/05/2016 08h20


Diabo, Satanás, Lúcifer e, às vezes, Leviatã ou Mefistófeles: varios nomes, várias faces, vários papéis (Foto: PIXABAY)

Se alguém te pedisse para imaginar o diabo, provavelmente viria à mente um demônio com um tridente nas mãos. No entanto, por centenas de anos, o diabo cristão não foi retratado pela arte religiosa e, quando finalmente surgiu, era azul e não tinha chifres ou cascos.

A imagem mais familiar para nós surgiu pelas mãos de gerações de artistas e escritores que pegaram o pouco que é dito pela Bíblia sobre Satanás e o reinventaram ao longo do tempo.

A Bíblia diz que Satanás era o maior adversário de Deus. Na Bíblia judaica, o diabo é apenas outro agente subordinado a Deus, um anjo do mal, uma alegoria que simbolizava a inclinação maligna dos homens e mulheres. Esse personagem foi desenvolvido pelos cristãos até transformá-lo em uma representação da maldade suprema.

Na obra dos irmãos Linbourg (1385–1416), Lúcifer tortura e é torturado (Foto: TRES RICHES HEURES DU DUC DE BERRY POR LIMBOURG BROTHERS )

A doutrina cristã diz que Satanás assumiu a forma de uma serpente e tentou Eva no Jardim do Éden, mas não há nenhuma menção ao diabo no livro Genesis. Foi só mais tarde que os cristãos interpretaram a serpente como uma encarnação de Satanás.

Também acredita-se que Satanás foi expulso do céu após desafiar a autoridade de Deus. Porém, na Bíblia, um personagem misterioso é expulso após rebelar-se contra Deus. A caracterização de Satanás como um anjo caído deriva dessa tradição.

A imagem de um Satanás que governa o inferno e inflige tortura e castigo aos pecadores também não encontra correspondência no texto sagrado. O livro das Revelações profetiza que Satanás será enviado ao inferno, mas sem qualquer status especial e sofrendo as mesmas torturas que os demais pecadores.

As faces do diabo
Nos primeiros séculos do Cristianismo, não havia muita necessidade de representar o mal na arte religiosa. Os cristãos acreditavam que os deuses pagãos rivais, como o egípcio Bes e o grego Pan, eram demônios responsáveis por guerras, doenças e desastres naturais.
Um anjo a ponto de abrir as portas do inferno nesta imagem feita entre 1121 e 1161 (Foto: SCIENCE PHOTO LIBRARY)

Cem anos depois, quando o diabo apareceu na arte ocidental, algumas representações incorporaram os atributos físicos destes deuses, como o pelo facial de Bes e as patas de cabra de Pan.

Anos 1260 ~ O diabo medieval
Na idade média, surgiu o retrato de Satanás mais reconhecível. Foi uma época de muito sofrimento, que ficou ainda pior com o surto de peste negra, a epidemia mais devastadora da história humana, com milhões de mortos na Europa.

Como a Igreja não podia proteger os fiéis da doença, as representações de Satanás centraram-se nos horrores do inferno, refletindo o ânimo do momento e lembrando por que não se devia pecar.
Com barba, cascos, chifres e rabo, o diabo aparece assustado em um jardim da erva que supostamente repele demônios (Foto: SCIENCE PHOTO LIBRARY)

Anos 1530 ~ Propaganda endiabrada
Há uma longa tradição de associar o diabo aos inimigos do Cristianismo dentro e fora da Igreja.

Na Bíblia de Alba, traduzida do hebraico para o castelhano medieval em 1430, o arcanjo Miguel luta contra Satanás (Foto: SCIENCE PHOTO LIBRARY)

Quando ela se dividiu durante a Reforma, católicos e protestantes se acusaram mutuamente de estarem sob a influência do diabo com propagandas jocosas e grotescas sobre esta corrupção.

Anos 1500-1600 ~ Feitiços e sedução
No início do período moderno, pessoas eram acusadas de fazer pactos com o diabo e praticar bruxaria. Satanás era frequentemente representado como um sedutor e se achava que as mulheres eram especialmente vulneráveis a seus encantos.

Imagens mostravam mulheres em atos sexuais com o diabo, por elas serem consideradas o sexo frágil e mais propensas a caírem em pecado por serem incapazes de dominar seus desejos carnais.

Se Satanás conseguia corromper o corpo feminino, era uma ameaça à segurança familiar, à santidade e até mesmo à fertilidade da comunidade.

Detalhe da la obra 'Ações dos diabos", publicada na Espanha no final do século 14 (Foto: SCIENCE PHOTO LIBRARY)

Anos 1600-1800 ~ Um diabo iluminado
Os escritores e pensadores iluministas reinterpretaram a história do diabo para que se ajustasse às preocupações políticas da época. John Milton descreveu um Lúcifer psicologicamente complexo no poema Paraíso Perdido, que conta a queda em degraça de Satanás.

Enquanto os textos religiosos anteriores haviam examinado a motivação de Satanás para condená-lo, o Lúcifer de Milton é um personagem atraente e solidário que encarna os sentimentos de rebeldia do republicanismo do século 17.

Para alguns artistas românticos e iluministas, Satanás era um nobre rebelde que travava uma batalha contra a autoridade tirânica de Deus.

"Lúcifer", de Franz von Stuck (1863-1928), dá a sensacão do diabo estar mais próximo de nós (Foto: Reprodução)

Anos 1900-2000 ~ Animal político
Quando a ciência conseguiu explicar a morte, as doenças e os desastres naturais, a figura do diabo ficou ameaçada. Havia lugar no mundo laico para Satanás?

Foi quando um diabo urbano e sofisticado entrou em cena. Seguindo uma tradição de identificá-lo com inimigos políticos e religiosos, o diabo foi usado para ilustrar a oposição política por meio de caricaturas e sátiras.

Além disso, Satanás encontrou seu lugar no mundo comercial, tornando-se sinônimo de excessos pecaminosos, aparecendo em propagandas para vender desde chocolate e champagne até carros de luxo.



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