Porões da loucura - Paulo Delgadoé

Porões da loucura

18/05/2016 - 01h10


Paulo Delgadoé sociólogo e como deputado federal foi o autor da Lei 10.216/2001(Lei da Reforma Psiquiátrica)

Onde colocar as pessoas que não têm afinidade com a sociedade civilizada mas não podem ser moralmente condenadas por isso? Como assegurar vantagem a quem está em desvantagem sem fazer disso um poder e tirar a autonomia da vontade dos assistidos?

Hoje é 18 de maio, Dia Nacional da Luta Antimanicomial. Data que homenageia pacientes, familiares e todos os que trabalham para diminuir a dor do doente mental. A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera que se a Lei da Reforma Psiquiatra, que fez 15 anos em abril, fosse integralmente aplicada, o Brasil poderia ser um modelo para outros países.

Além do mau cumprimento da lei brasileira, o que também preocupa, é a divulgação, como verdade irreprimível, da definição de doença mental da quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, da American Psychiatric Association, - conhecido como DSM-5. Para a psiquiatria tradicional o cérebro é um computador sem alma, intoxicado, num mundo doente, a ser salvo por remédio e internação. A OMS condena a desenvoltura da classificação e alerta para os porões da indústria de medicamentos, interessada em adoecer todo o mundo.

Como está, ninguém escapará da lista da loucura. Quem não viveu, alguma vez na vida, alguma dessas graves “doenças” psiquiátricas: abuso ou abstinência de substâncias, ansiedade, déficit de atenção, transtorno bipolar, confusão, desatenção, tendência à psicose, transtorno de personalidade, comportamento antissocial, apego reativo, amnésia, esquizofrenia, distúrbios diversos etc. São tantos os nomes das “doenças do nervo”, que começa a ficar preocupante o convívio humano. A menos que a sociedade perceba a gravidade dessa epidemia, que fez o mundo aceitar ter mais farmácia que livraria. Epidemia que é querer tratar pela psiquiatria todas as dificuldades e problemas que fazem parte da vida e, assim, capturar novos doentes. Quem disse a esses senhores que maldade, egoísmo, estupidez, é doença mental? Quem acha que foi o doente mental que criou a desonestidade, o stress e a violência de nossa cultura?

Junte a pressão cada vez mais veloz e insana da vida diária a essa forte tradição, que tem a medicina, de “encaixar um sintoma” e mandar para o hospital, que seremos todos estigmatizados. Qual é a definição precisa de transtorno mental? Perder um emprego, sofrer um acidente, frustrar-se, confundir-se na vida durante a juventude, ter medo da solidão: quem, algum dia, não precisou de mais afeto e atenção do que de remédio? Quem pagará pela tragédia que o diagnóstico errado causa na vida das pessoas? Quem cuidará, sem abandono, dos verdadeiros doentes?

A prática da medicina, subjugada ao caixa da indústria farmacoquímica, é uma bomba embrulhada. E o diagnóstico médico que interdita e encarcera, prescreve a droga que faz do homem um repolho, esconde hábitos de uma sociedade irritada com os diferentes ritmos a que a vida nos submete. E que só vê as pessoas de forma binária, como polos do interesse monetário: ou você exala dinheiro, ou não fede nem cheira.

Quando a dor e o sofrimento não geram mais afeição a sociedade é que é a doença e o doente.
Foto: André Fossati
http://noblat.oglobo.globo.com/artigos/noticia/2016/05/poroes-da-loucura.html


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