Veja aQI se é mesmo inteligente

Veja aQI se é mesmo inteligente

O que significa ser inteligente? Há só um tipo de inteligência ou várias? E é possível resumir-se a um número? A discussão continua a gerar polémica. Mas as avaliações conhecidas como “testes de QI” continuam a ser as mais utilizadas sempre que é necessário medir a inteligência

ISABEL LEIRIA-texto,CARLOS ESTEVES19.02.2017 às 16h00


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Além dos 5 que tirava a todas as disciplinas sem grande esforço, com exceção da Educação Física, havia algo mais que fazia Carlos Simões sentir-se diferente dos colegas de escola. Não que fosse um ‘rato de biblioteca”, mas ainda em adolescente tinha de tirar parte do dia para se isolar e devorar páginas de livros e deixar as ‘futilidades’ de lado, aprender qualquer coisa em vez de jogar à bola ou dedicar-se a experiências no laboratório de química que construiu no quarto. “Cheguei a pegar fogo à colcha da cama porque estava a tentar preparar um verdadeiro cocktail molotov, com ácido sulfúrico, gasolina e clorato de potássio”, recorda o hoje engenheiro do Ambiente e diretor de controlo de qualidade numa empresa agroalimentar. Mas foi só muito mais tarde, já adulto, que, por curiosidade, decidiu fazer o teste de admissão à Mensa, a mais antiga e mais reconhecida organização que junta pessoas com um QI muito elevado — apenas entra quem apresente resultados de quociente de inteligência superior aos de 98% da população, medido por um teste de inteligência desenvolvido pela própria organização ou por outros testes reconhecidos internacionalmente.



O resultado deu-lhe direito a entrada direta na Mensa (com uma pontuação de 164 na escala de inteligência de Cattell, equivalente a uma pontuação de QI de 140 nas escalas de Wechsler) e noutras sociedades semelhantes, mas com critérios de admissão ainda mais elevados, como a Cerebrals, que exige uma pontuação superior ao percentil 99,7. Por outras palavras, Carlos Simões integra os 0,7% da população mais inteligente. O rótulo nada lhe diz, garante: “Fiz os testes não por vaidade mas por curiosidade, para ver quem estava do outro lado, porque o que acontece é que há determinados momentos que sentimos que não estamos no lugar certo, que quem está à nossa volta não partilha os mesmos gostos, e interesses. Nos encontros com outros membros da Mensa podemos falar dos assuntos do dia a dia, da política, da corrupção, de Donald Trump (nem de propósito, o Presidente dos Estados Unidos disse esta semana, não se sabe se a sério ou a brincar, ter o gabinete com o mais alto QI de sempre), mas a discussão é levada a outro nível. Ouvimos os outros e estamos abertos a outras opiniões porque sabemos que ali ninguém é burro.”

INTELIGÊNCIA GERAL VS. MÚLTIPLAS 
INTELIGÊNCIAS


Há mais de 100 anos que os testes de QI (Stanford-Binet, Wechsler, Raven, Cattell) têm sido usados para medir a inteligência das pessoas. O índice de QI resulta da comparação da pontuação obtida num determinado teste com a média obtida pela população que se submete à mesma prova. Quanto mais acima da média (100) ‘mais inteligente’. Se ultrapassar os 130/140 considera-se que tem uma inteligência “muito superior”, possivelmente conducente ao ‘diagnóstico’ de sobredotação.

A questão é que o próprio conceito de inteligência foi evoluindo ao longo dos tempos e tem significados diferentes consoante a escola de pensamento. No fundo, tudo se resume a duas perguntas: o que é ser inteligente? É possível traduzir a inteligência num único número?

Ser inteligente “é a capacidade de em menor tempo e com maior precisão responder a um determinado problema novo, sem erro”, responde Carlos Simões. Não através do conhecimento, da experiência ou da aprendizagem acumulada, mas recorrendo a algo que é inato. E esse fator de inteligência “fluida” ou inteligência “geral” acaba por influenciar todas as tarefas intelectuais.

A definição não será tão simples, ou, pelo menos, tão consensual. “Os testes tradicionais de inteligência medem um determinado tipo de inteligência (lógico-matemática, verbal) mas não medem todas as faculdades intelectuais/cognitivas/mentais consideradas importantes e necessárias para o processo de tomada de decisão na vida real”, lembra Mário Simões, responsável pela adaptação e validação de várias escalas e testes de inteligência para a população portuguesa. Nem medem, continua o professor catedrático da Faculdade de Psicologia de Coimbra e diretor do Laboratório de Avaliação Psicológica e Psicometria da universidade, as chamadas “inteligências múltiplas”, definidas pelo psicólogo Howard Gardner, no final do século passado, e que vieram pôr em causa a ideia da existência de uma única inteligência, suscetível de ser medida e resumida num índice de QI.

Para o psicólogo de Harvard existem as inteligências lógico-matemática, linguística, musical, espacial, corporal-cinestésica, intrapessoal, interpessoal, naturalista e existencial. E é perfeitamente possível ter níveis diferentes para cada uma delas.

“A falta de instrumentos de avaliação válidos, isto é, fundamentados com dados da investigação empírica constituem, neste momento, o principal obstáculo à utilização destes outros tipos ou formas de inteligência
em protocolos de avaliação psicológica. Contudo, a avaliação da inteligência deve ser cada vez mais contextualizada na vida real das pessoas e, nesta avaliação, reconhecido e valorizado o papel de variáveis como a sensibilidade, a sabedoria, a perspicácia, a intuição, a curiosidade ou mesmo a atenção. A dificuldade maior é a mensuração válida e objetiva de alguns destes conceitos, incluindo as denominadas inteligências múltiplas de Gardner”, reforça Mário Simões.

A ASCENSÃO DAS COMPETÊNCIAS

É essa a linha que passou a ser seguida no mundo profissional, onde conceitos como “inteligência emocional”, “soft skills”, capacidade de adaptação ganharam importância, sendo considerados “mais importantes para o sucesso profissional do que um ter um QI de 100 ou 120”, diz Amândio da Fonseca, administrador da Egor, que se dedica à seleção e recrutamento de profissionais.

“Se as pessoas de que estamos à procura já têm um currículo e anos de experiência não aplicamos esses testes. Se se tratar de jovens licenciados e que estão no início da carreira, usamo-los para fazer uma primeira triagem. Mas não é aí que incide o enfoque da seleção. Passa muito mais por entrevistas, discussões de casos, resolução de problemas, testes de personalidade”, descreve Amândio da Fonseca.

Mas se é assim no mundo profissional das empresas e organizações, no meio académico, bem como “em contextos educativos, clínicos e forenses reconhece-se que escalas e testes de inteligência continuam a ser instrumentos indispensáveis sempre que se pretende obter uma medida mais objetiva e válida de inteligência”, ressalva Mário Simões. A questão é que devem ser complementados por outros instrumentos de avaliação da personalidade, do comportamento, do funcionamento emocional, por entrevistas e dados da observação, informações prestadas por pais, professores ou familiares. “Apenas assim os QI obtidos a partir das escalas de inteligência podem ser úteis na caracterização psicológica das pessoas, incluindo aquelas com dificuldades de aprendizagem, dificuldades intelectuais, sobredotação e na definição das intervenções mais adequadas”.

A verdade é que ter um QI invulgarmente elevado não é necessariamente sinónimo de sucesso profissional e de realização pessoal, como reconhece Carlos Simões. “É fácil as pessoas com intelecto superior serem incompreendidas ou interpretadas como sendo portadoras de uma patologia apenas porque não são ‘normais’”, lembra também Jorge Mota, psiquiatra no Hospital Magalhães Lemos e ele próprio um sobredotado, membro da Mensa.

“Os quocientes de inteligência são reconhecidamente os melhores preditores dos desempenhos escolares e profissionais, mas não são evidentemente suficientes para prognosticar o futuro da pessoa. Aqui a história de vida da pessoa é igualmente decisiva”, lembra Mário Simões.

Fonte: http://expresso.sapo.pt/sociedade/2017-02-19-Veja-aQI-se-e-mesmo-inteligente


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