Teorias em tempos de barbárie
FERNANDO
GABEIRA - O Estado de S.Paulo
16
Janeiro 2015 | 02h 05
Num
balanço de 2014 acentuei a presença da barbárie como um traço decisivo. Mal
começa o ano, de volta ao trabalho na rua, surge o atentado contra a revista
Charlie Hebdo. Ainda bem que o trabalho estava concluído. Sabia que ia
mergulhar no mundo dos debates, interpretações, e precisava do máximo de
esforço para entender o que se passa, para além da indignação.
É
um desses momentos de grande intensidade. Você vai à sala, ruminando
argumentos, e quando volta ao quarto da TV já se deixa levar por outro tema.
Autoridades
e os âncoras de TV acentuavam a cada instante que era preciso dissociar a
violência do islamismo. Lembrei-me do tempo de menino: cuidado com o
bicho-papão. O bicho-papão nesta aventura associativa é parecer racista ou
islamofóbico. Minha intuição, no entanto, caminha no sentido contrário do
politicamente correto.
Quando
critiquei Estados islâmicos num encontro de escritores, um colega da Etiópia
disse que estava sendo injusto com o Islã. Mas uma religião, quando se funde
com o Estado, resulta, fatalmente, em repressão.
Prometi
estudar o Islã, mas naquele momento o sufismo tinha mais apelo para mim.
Mantive a intuição para um dia transformá-la em argumento, com base na análise
do texto.
No
auge de minhas incertezas, diante dos conselhos na TV, encontrei no noticiário
uma voz mais preparada que eu: o presidente do Egito, Abdel Fattah el-Sisi. Ele
fala de dentro do islamismo e reconhece que a religião está infestada de
interpretações que semeiam a violência. E propõe uma revolução religiosa para
conciliar o islamismo e a pluralidade democrática. Observo que, na História
secular, houve debate semelhante sobre o marxismo. O texto é correto, o
equívoco está nas interpretações.
Mas
textos que se abrem a interpretações autoritárias e sanguinolentas não deveriam
ser examinados criticamente?
Aí
entra um novo debate, em que o politicamente correto fortalece o radicalismo
islâmico. Numa democracia ocidental não há textos proibidos para a crítica. Ou
seja, a blasfêmia não é um crime, mas o exercício do direito de expressão.
O
Charlie Hebdo foi criticado por alguns por ser provocador da ira religiosa. O
que, no fundo, querem dizer os críticos é tirar a religião do raio de alcance
da liberdade de crítica.
Os
radicais islâmicos aproveitam a atmosfera de debate para mostrar que os
muçulmanos, lá, não estão em casa. Mas o que querem, afinal? Que a França abra
mão de algumas de suas liberdades para que se sintam em casa? Nesse caso, os
franceses é que sairão da própria casa, construída com valores inegociáveis.
É
inegável que os muçulmanos se arriscam para combater o extremismo islâmico e
perdem muito mais vidas que o Ocidente nos ataques terroristas. Muitas
comunidades muçulmanas colaboram com os EUA no combate ao terrorismo. E pode
estar nessa colaboração a forma mais eloquente de dissociar o Islã da
violência. Mas quando se trata de liberdade de expressão no sentido que envolve
também a crítica religiosa, a resposta costuma ser a pena de morte.
A
fatwa decretada contra Salman Rushdie por autoridades religiosas iranianas é
uma prova disso. Agora mesmo, na Arábia Saudita, o blogueiro Ralf Badawi foi
condenado a mil chibatadas.
Na
França vive-se um momento singular. A presença muçulmana não é discutida apenas
no Charlie Hebdo, mas tema de romances e ensaios que de alguma forma refletem o
dilema central: integrar a comunidade muçulmana no pluralismo ocidental ou
islamizar o país?
A
imprensa americana (New York Times, CNN) opta por não divulgar material
ofensivo às religiões. Mas a verdade é que, à sua maneira, o Charlie Hebdo vai
no sentido de buscar no texto as raízes do violência desvairada. Chérif Kouachi
disse que queria morrer como mártir porque o martírio era uma glória. O Charlie
Hebdo compreende bem a conexão do texto religioso com a sucessão de atentados.
Um dos desenhos publicados mostrava Maomé na porta do paraíso e a frase: parem
de lançar bombas porque estamos em falta de virgens.
Ouvi
muitos analistas falando em tratar o tema com oportunidades econômicas. Não
vejo como Said e Chérif, e pessoas como eles, se ajustariam à sociedade com um
emprego de caixa de supermercado.
O
movimento de jovens que se envolvem numa aventura político-religiosa tem
crescido e transcende a própria comunidade muçulmana. É uma batalha cultural
que se desenrola e o politicamente correto pode ser um embaraço se não
compreender que é preciso desenvolver cada vez mais a cooperação dos serviços
de inteligência, usar os melhores recursos humanos e tecnológicos para prender
e neutralizar os terroristas.
É
difícil prender quem vê o martírio como uma glória. A tendência é que morra
resistindo, como morreram os irmãos Kouachi.
Estamos
num jogo mais pesado ainda do que viveu a geração pós-guerra às voltas com a
luta contra o colonialismo. Sartre e a esquerda, na qual me incluo, na época
viam com compreensão benevolente os ataques terroristas da FLN na Argélia.
Camus
resistiu e se isolou na condenação do terrorismo. Na Suécia, chegou até a
simplificar seu argumento: minha mãe mora na Argélia e pode ser morta num
atentado.
Ao
debater a peça Os Justos, após o 11 de Setembro, usei o exemplo dos personagens
desse texto de Camus para enfatizar a singularidade de nossa época. Os
terroristas adiaram a execução do arquiduque Francisco Ferdinando porque havia
crianças na carruagem. Os terroristas de hoje afirmam que matam crianças sem
hesitar porque as crianças muçulmanas são mortas também. Mais do que no tempo
de Camus, as mães estão ameaçadas, por esse mesmo argumento.
Dilma
propôs diálogo com o Exército Islâmico, na ONU. É a mais radical no campo do
politicamente correto. Envolto em seus fantasmas ideológicos, o governo está
pra lá de Marrakesh. Lembra um personagem de Glauber Rocha que dizia mais ou
menos assim: estou tão perdido que não sei mais quem é o inimigo.
*Fernando
Gabeira é jornalista
Comentários
Postar um comentário