Saindo do armário
18/05/2015 01h46
Está dicionarizado em inglês o termo "outing" – o ato de explanar a orientação sexual de terceiros, normalmente celebridades e políticos até então dentro do armário.
O termo é relativamente novo e o tema, polêmico. Ativistas costumam justificar a evasão da privacidade alheia por combater a hipocrisia num mundo onde gays são alvo de preconceito e violência. Nos Estados Unidos e Inglaterra, congressistas que votavam contra direitos civis para os homossexuais já foram arrancados à força do armário. É comum que revejam suas posições.
Penso que deveríamos começar a pensar num outro tipo de "outing" que, a meu ver, é tão ou mais urgente que o primeiro. Abrir as portas do armário (ou seria a gaveta?) das drogas.
É fato que seres humanos consomem drogas desde a Idade da Pedra. É fato que a recente política de repressão falhou no mundo inteiro. Trata-se de uma das grandes tragédias do século passado que se arrasta por este: o custo social do combate armado às drogas é infinitamente superior ao custo de lidar com o uso regulamentado e legalizado dessas substâncias. A guerra não apenas não reduziu o número de usuários como matou mais do que qualquer droga seria capaz.
A militarização de um problema de saúde pública não interessa ao conjunto da sociedade e sim à indústria bélica e a vendedores de "segurança" institucional. Vivemos reféns de uma legislação que falha em resolver o problema e, no Brasil, alimenta uma guerra que elimina sistematicamente negros e pobres nas periferias. Para muita gente, essa letalidade deve fazer sentido – o tal do "gozo social", citando o Hélio Oiticica.
Conservadores não liberais costumam dizer que "o playboy do asfalto financia a bala do fuzil do traficante com o seu baseadinho". Essa falácia argumentativa desconsidera que o tráfico armado só existe por causa do proibicionismo e ignora as íntimas conexões financeiras entre respeitáveis lavadores de dinheiro, políticos, contrabandistas de armas, policiais, bancos e o tráfico. No fim das contas, quem ajuda a comprar a arma do miserável varejista na ponta do comércio é o voto na urna, via lobby da bala. A depender do caso, o dinheiro vai parar numa conta numerada do HSBC na Suíça. No morro apenas sobram os mortos, normalmente anônimos como os donos da grana –é a única coisa que têm em comum.
A grande maioria dos leitores deste texto não vive sob o estado de exceção legitimizado pela guerra às drogas e não corre o risco diário de ver o filho baleado por policiais ou traficantes. Assim fica confortável terceirizar o problema e dormir com ossadas embaixo da cama. Falta envolvimento e conscientização sobre o que é mais letal e nocivo quando se trata do tema das drogas: a própria política proibicionista.
A ideia de demonizar essas substâncias e marginalizar seus usuários é um dos pilares dessa política. Quanto mais usuários saírem do armário, mais a sociedade terá que encarar o uso de drogas recreativas com normalidade – ou ao menos como um problema cuja solução passa longe do fuzil e da prisão.
Imagine uma campanha que revele às senhorinhas eleitoras de Telhada ou Bolsonaro que seus ídolos, galãs e mocinhas das novelas, são maconheiros –e que tudo bem, levam suas vidas e decoram os textos normalmente. Ou o poder que teriam declarações de compositores, gênios da música brasileira e ídolos populares ao admitir que nas últimas décadas ingeriram consideráveis doses de cocaína e todo tipo de bolinhas?
Nos últimos dez anos perdi a conta de quantas estrelas de TV, músicos consagrados, escritores, dramaturgos, jornalistas, editores, galãs de novela, celebridades e capas de revista vi fumar unzinho ou esticar uma carreira em festinhas de apartamento ou camarins de shows. Não sou do tipo de escritor que confraterniza com políticos e autoridades, mas relatos dizem que não é muito diferente.
É muito fácil conseguir o que se quer nas esquinas e salões de qualquer cidade brasileira. Sou um fumante ocasional de maconha, skank e haxixe. Já fui mais assíduo com MDMA, minha droga preferida. Hoje tento diminuir para uma vez a cada duas ou três semanas porque a qualidade anda cada vez pior no Brasil. Aqui também é complicado encontrar bons opiáceos, ácidos e cogumelos, que só consigo no exterior.
Reconheço e assumo o risco dessas substâncias, a irresponsabilidade de comprá-las sem bula, mas nenhuma delas jamais me causou tanto dano físico e emocional quanto o álcool, a única droga legal que consumo. A única, aliás, que me gerou dependência.
O debate é urgente. Corro o risco de soar ingênuo ao esperar que figuras públicas abram suas gavetas advogando pelo fim de um proibicionismo que mata muito mais que qualquer droga.
Afinal, o meio artístico brasileiro hoje é um dos mais dóceis do planeta quando trata-se de desafiar o status quo – talvez por covardia pura e simples de contrariar quem emite seus contracheques e quem pode lhes oferecer um edital. Que tentem dormir tranquilos: para quem tem voz nesse país, ficar em silêncio é sujar as mãos.
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