Descoberta a provável
causa do vício. E não é o que você pensa
Publicado: 19/06/2015 15:25 BRT Atualizado: 3 horas atrás
Faz cem anos que as drogas foram
proibidas pela primeira vez - e, ao longo desse século de guerra contra as
drogas, professores e governos nos contaram histórias de vício. Essas histórias
estão enraizadas em nossas mentes. Elas parecem óbvias, verdades evidentes.
Até três
ano atrás, quando comecei uma jornada de 50 000 quilômetros para escrever meu
novo livro, 'Chasing The
Scream: The First and Last Days of the War on Drugs'(Perseguindo
o grito: os primeiros e os últimos dias da guerra contra as drogas, em tradução
livre), eu também acreditava nisso. Mas o que descobri em minhas viagens é que
quase tudo o que nos contaram sobre o vício está errado - e existe uma história
muito diferente à nossa espera, se estivermos prontos para ouvi-la.
Se realmente absorvermos essa nova
história, teremos de mudar muito mais que a guerra contra as drogas. Teremos de
nos transformar.
Aprendi com uma mistura
extraordinária de pessoas que conheci na estrada. Dos amigos de Billie Holiday,
que me ajudaram a entender como o fundador da guerra contra as drogas a
perseguiu e ajudou a matá-la. De um médico judeu que foi tirado às escondidas
do gueto de Budapeste quando era bebê, para depois destravar os segredos do
vício quando adulto.
De um transexual traficante de
crack do Brooklyn que foi concebido quando sua mãe, uma viciada em crack, foi
estuprada pelo pai dele, um policial de Nova York. De um homem que foi mantido
preso no fundo de um poço durante dois anos por uma ditadura para depois
emergir e ser eleito presidente do Uruguai, começando os dias finais da guerra
contra as drogas.
Tinha uma razão bastante pessoal
para sair em busca dessas respostas. Uma das minhas primeiras lembranças da
infância é tentar acordar um parente, sem sucesso. Desde então, venho pensando
sobre o mistério do vício - o que faz algumas pessoas se fixar em uma droga ou
um comportamento a ponto de não conseguir parar? Como ajudamos essas pessoas a
voltar para a gente? Ao envelhecer, outro parente próximo ficou viciado em
cocaína, e eu me envolvi com uma pessoa viciada em heroína. Acho que me sinto
em casa perto de viciados.
Se você me perguntasse lá atrás o
que provoca o vício em drogas, te olharia como se você fosse um idiota e diria:
"Drogas. Dã." Não é difícil entender. Achei que tivesse visto isso
acontecer na minha própria vida. Qualquer um consegue explicar. Imagine se eu,
você e as próximas 20 pessoas que passarem na rua tomássemos uma droga potente
por 20 dias. Existem agentes químicos fortes nessas drogas, então no
vigésimo-primeiro dia nossos corpos precisariam desses químicos. Teríamos uma
necessidade urgente deles. Estaríamos viciados. Esse é o significado de vício.
Essa
teoria foi estabelecida por meio de experimentos com ratos - experimentos que
foram injetados na psique americana nos anos 1980, em um famoso anúncio daPartnership for
a Drug-Free America. Você talvez se lembre. O experimento é simples.
Coloque um rato numa gaiola, sozinho, com duas garrafas d'água. Uma delas tem
só água. A outra tem água misturada com cocaína ou heroína. Em quase todas as
vezes que você fizer esse experimento, o rato vai ficar obcecado com a água com
drogas. Ele vai tomá-la até morrer.
O anúncio explica: "Só uma
droga é tão viciante, nove de dez ratos de laboratório vão usá-la. E usá-la. E
usá-la. Até a morte. É chamada cocaína. E ela pode fazer o mesmo com
você".
Mas, nos
anos 1970, um professor de psicologia de Vancouver chamado Bruce Alexander percebeu
algo estranho nesse experimento. O rato está sozinho na gaiola. Ele não tem
nada para fazer além de usar a droga. O que aconteceria se tentássemos algo
diferente? Então Alexander criou o Rat Park. É uma gaiola sofisticada, onde os
ratos têm bolas coloridas e túneis para brincar, vários amigos e a melhor das
comidas: tudo o que um rato poderia desejar. Alexander queria saber o que iria
acontecer.
No Rat Park, todos os ratos
tomaram água das duas garrafas, é claro, porque não sabiam o que elas
continham. Mas o que aconteceu depois foi surpreendente.
Os ratos nessa vida boa não
gostavam da água com drogas. Eles basicamente a ignoravam: consumiam menos de
um quarto dessa água, em comparação com os animais isolados. Nenhum deles
morreu. Todos os ratos que estavam sozinhos em suas gaiolas se tornaram
dependentes da droga, mas isso não aconteceu com nenhum dos animais do Rat
Park.
Inicialmente, achei que isso fosse
meramente uma idiossincrasia dos ratos, até descobrir que havia - na mesma
época do experimento do Rat Park - um equivalente humano em andamento. Era a
Guerra do Vietnã.
A revista Time relatou que, entre
os soldados americanos, usar heroína estava se tornando um hábito tão
corriqueiro quanto mascar chiclete, e existem evidências sólidas para sustentar
tal afirmação: cerca de 20% dos soldados americanos ficaram viciados em heroína
no Vietnã, segundo um estudo publicado no Archives of General Psychiatry. Muita
gente ficou compreensivelmente aterrorizada; elas achavam que com o fim da
guerra um enorme número de viciados voltaria para casa.
Mas, na realidade, cerca de 95%
dos soldados viciados - segundo o mesmo estudo - simplesmente pararam de usar
heroína. Alguns poucos foram para clínicas de recuperação. Eles passaram de uma
gaiola aterrorizante para uma agradável, e não queriam mais usar drogas.
Alexander argumenta que essa
descoberta é uma contestação profunda tanto da visão direitista, segundo a qual
o vício é uma fraqueza moral causada por uma vida de festas e hedonismo, quanto
da visão liberal, que diz que o vício é uma doença que existe num cérebro
quimicamente sequestrado. Na verdade, segundo Alexander, vício é adaptação. Não
é você. É a gaiola.
Depois da primeira fase do Rat
Park, Alexander levou seu teste além. Ele refez os primeiros experimentos, nos
quais os ratos se tornavam usuários compulsivos de drogas. Ele os deixou usar a
droga durante 57 dias - se tem um jeito de ficar viciado, é esse.
Então ele
tirou os animais do isolamento e os colocou no Rat Park. Alexander queria saber
se, uma vez viciado, o cérebro estava sequestrado e não havia maneira de
recuperá-lo. As drogas assumem o controle? O que aconteceu - de novo - foi
impressionante. Os ratos pareciam exibir alguns tremores de abstinência, mas
logo pararam de usar as drogas pesadamente e voltaram a ter uma vida normal. A
gaiola boa os salvou. (As referências completas de todos os estudos que estou mencionando estão
no livro.)
Quando soube disso, fiquei
encucado. Como seria possível? Essa nova teoria é um ataque tão radical ao que
nos contaram que não parecia ser verdade. Mas, quanto mais cientistas
entrevistava, quanto mais estudos lia, mais descobria coisas que não pareciam
fazer sentido - a menos que você leve em conta essa nova abordagem.
Eis um exemplo de experimento que
acontece à sua volta, e pode inclusive acontecer com você um dia desses. Se
você for atropelado e quebrar a bacia, provavelmente vão te dar diamorfina, o
nome médico para heroína.
No hospital, haverá muita gente
tomando heroína por longos períodos, para aliviar a dor. A heroína que o médico
te der vai ser muito mais pura e potente que aquela usada pelos viciados, que
compram uma droga adulterada pelos traficantes. Então, se a velha teoria do
vício estiver certa - a culpa é da droga; ela faz seu corpo precisar dela -, é
óbvio o que vai acontecer. As pessoas sairão do hospital e irão direto procurar
um traficante para comprar heroína.
Mas eis o
que é estranho: isso virtualmente nunca acontece. Como me explicou o médico
canadense Gabor Mate os
usuários de heroína médica simplesmente param, apesar de meses de uso. A mesma
droga, usada pelo mesmo período, cria viciados nas ruas, mas não afeta os
pacientes de hospitais.
Se você ainda acredita, como eu
acreditava, que o vício é causado por agentes químicos, isso não faz sentido.
Mas, se você acredita na teoria de Bruce Alexander, a imagem começa a entrar em
foco. O viciado da rua é o rato da primeira gaiola, isolado, sozinho, com uma
única fonte de conforto. O paciente do hospital é o rato da segunda gaiola. Ele
vai para casa, para uma vida em que está cercado pelas pessoas que ama. A droga
é a mesma, mas o ambiente é diferente.
Isso nos dá um insight muito mais
profundo que a necessidade de entender os viciados. O professor Peter Cohen
argumenta que os seres humanos têm uma necessidade profunda de estabelecer
laços e conexões. É como nos satisfazemos. Se não conseguirmos nos conectar uns
com os outros, vamos nos conectar com o que encontrarmos - a bolinha pulando na
roleta ou a ponta da agulha de uma seringa. Ele diz que deveríamos simplesmente
parar de falar em "vício": deveríamos falar em "ligação".
Um viciado em heroína criou uma ligação com a droga porque não conseguiu
estabelecer outras conexões.
O oposto
de vício, portanto, não é sobriedade. É conexão humana.
Quando soube disso tudo, fui sendo
persuadido gradualmente. Mas restava uma dúvida incômoda. Será que os
cientistas estão dizendo que a parte química do vício não faz diferença
nenhuma?
Me explicaram - você pode se
viciar em jogo, mas ninguém vai achar que você vai injetar um baralho nas
veias. Você pode ser viciado, mas não há o lado químico. Fui a uma reunião dos
Viciados em Jogos Anônimos em Las Vegas (com a permissão de todos os presentes,
que sabiam que eu estava lá apenas como observador). Eles eram tão viciados
quanto os usuários de cocaína e heroína que conheci. Mas uma mesa de pôquer não
tem químicos.
Ainda
assim, perguntei: a química desempenha algum papel? Um experimento tem a
resposta precisa, que descobri no livro The
Cult of Pharmacology (o culto da farmacologia, em tradução
livre), de Richard DeGranpre.
Todos concordam que fumar cigarros
é um dos processos mais viciantes que existem. Os químicos do tabaco vêm da
nicotina. Quando foram inventados os adesivos de nicotina, no começo dos anos
1990, houve uma grande onda de otimismo - os fumantes poderiam satisfazer suas
necessidades químicas sem o resto dos efeitos imundos (e mortais) do cigarro.
Seria a libertação.
Mas o Ministério da Saúde
descobriu que apenas 17,7% dos fumantes conseguem parar de fumar usando
adesivos de nicotina. É claro que não é pouca coisa. Se os químicos respondem
por 17,7% do vício, como mostra esse dado, ainda temos milhões de vidas
arruinadas globalmente. Mas o que ele revela, mais uma vez, é que a história
que nos contaram sobre as causas químicas do vício é real, mas só uma parte
pequena de uma fotografia muito maior.
Isso tem enormes implicações para
a secular guerra contra as drogas. Essa guerra massiva - que, como vi, mata
gente dos shoppings mexicanos às ruas de Liverpool - é baseada na afirmação de
que precisamos erradicar fisicamente uma vasta gama de químicos, pois eles
sequestram cérebros e provocam o vício. Mas, se as drogas em si não são as
causadoras do vício - se, na verdade, é a desconexão que causa o vício --,
então nada disso faz sentido.
Ironicamente,
a guerra contra as drogas na verdade potencializa esses causadores de vício.
Por exemplo: fui a uma prisão no Arizona - "Tent City" --,
onde os detentos ficam presos em minúsculas celas de pedra ("O
Buraco") por semanas a fio se usarem drogas. É a versão humana mais próxima
que consigo imaginar das gaiolas de isolamento dos ratos. Quando os presos saem
da cadeia, não conseguirão emprego, porque têm ficha criminal - garantido um
isolamento ainda maior. Vi exemplos assim no mundo inteiro.
Existe uma alternativa. Você pode
criar um sistema desenhado para ajudar os viciados a se reconectar com o mundo
- e, assim, deixar o vício para trás.
Isso não é teoria. Está
acontecendo. Vi com meus próprios olhos. Cerca de 15 anos atrás, Portugal tinha
um dos piores problemas de drogas da Europa - 1% da população era viciada em
heroína. Os portugueses tentaram a guerra contra as drogas, mas o problema só
piorava. Então decidiram fazer algo radicalmente diferente. Resolveram
descriminar todas as drogas e usar o dinheiro gasto para prender os viciados em
programas de reconexão - com seus sentimentos e com a sociedade. O passo mais
crucial é garantir moradia e empregos subsidiados, para que eles tenham
propósito na vida, algo que os faça sair da cama pela manhã. Em clínicas
acolhedoras, vi os viciados aprendendo a se reconectar com seus sentimentos,
depois de anos de trauma e de um silêncio forçado causado pelas drogas.
Um exemplo que observei foi um
grupo de viciados que recebeu um empréstimos para começar uma empresa de coleta
de lixo. Repentinamente, eles eram um grupo, todos conectados entre si e com a
sociedade, cuidando uns dos outros.
Agora se
conhecem os resultados disso tudo. Um estudo independente do British Journal of Criminology descobriu
que, desde a total descriminação, o vício caiu e o uso de drogas injetáveis
teve redução de 50%. Repito: o uso de drogas injetáveis teve redução de 50%. A
descriminação foi um sucesso tão grande que pouquíssima gente em Portugal
defende uma volta ao antigo sistema. O maior opositor dessa política em 2000
era João Figueira, o principal policial da força antidrogas. Ele fez alertas
terríveis, do tipo que se espera ouvir na Fox
News ou ler no Daily Mail. Mas, quando conversamos em Lisboa,
Figueira me disse que nenhuma de suas previsões se confirmou - e agora ele
espera que o resto do mundo siga o exemplo português.
Isso não é relevante só para os
viciados que amo. É relevante para todos nós, pois nos força a pensar de
maneira diferente a respeito de nós mesmos. Os seres humanos são animais que
precisam de laços. Precisamos de conexões e de amor. A frase mais sábia do
século 20 foi "Apenas se conecte", de E.M. Forster. Mas criamos um
ambiente e uma cultura que cortou conexões, ou que oferece apenas um simulacro
delas: a internet. O crescimento do vício é sintoma de uma doença mais profunda
na maneira como vivemos - constantemente olhando para o próximo objeto
brilhante que queremos comprar, em vez dos humanos que nos cercam.
O escritor George Monbiot fala na
"era da solidão" Criamos sociedades humanas em
que o corte de conexões nunca foi tão fácil. Bruce Alexander, o criador do Rat
Park, me disse que falamos demais em recuperação de indivíduos. Precisamos
falar de recuperação social - como todos nos recuperamos juntos da doença do
isolamento que recai sobre nós como uma névoa densa.
Mas essas novas evidências não são
apenas um desafio político. Elas não nos forçam somente a transformar nossas
cabeças. Elas nos forçam a transformar nossos corações.
É muito difícil amar um viciado.
Quando olho para os viciados que amo, é sempre tentador optar pela estratégia
durona recomendada por programas como Intervention - falar para o viciado tomar
jeito ou então cortá-lo de sua vida. A mensagem é que o viciado que não parar
com as drogas deve ser rejeitado. É a lógica da guerra contra as drogas
importada para nossas vidas. Mas, na verdade, aprendi que isso só agrava o
vício - e você pode perder a pessoa para sempre. Voltei para casa determinado a
me aproximar como nunca dos viciados da minha vida - dizer para eles que os amo
incondicionalmente, consigam eles parar ou não.
Quando terminei minha longa
jornada, olhei para meu ex-namorado, em crise de abstinência, tremendo no
quarto de visitas, e pensei nele de um jeito diferente. Há um século estamos
entoando cantos de guerra sobre os viciados. Quando secava a testa dele, me
ocorreu que deveríamos estar entoando canções de amor.
A história
completa da jornada de Johann Hari - contada por meio das histórias das pessoas
que ele conheceu - está em 'Chasing
The Scream: The First and Last Days of the War on Drugs' (Perseguindo
o grito: os primeiros e os últimos dias da guerra contra as drogas, em tradução
livre), publicada pela Bloomsbury. O livro foi elogiado por Elton John, Naomi
Klein e Glenn Greenwald, entre outros. Saiba mais sobre o
livro
As referências completas e fontes
para todas as informações citadas neste artigo estão nas extensas notas do
livro.
Este artigo foi originalmente publicado
pelo HuffPost US e
traduzido do inglês.
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