Fronteiras
da solidão: os lados bom e ruim
Estar
sozinho é essencial para o autoconhecimento. Então por que nos apegamos tanto
ao medo de ficar só? O Viver Bem traz uma reflexão sobre o tema
Enquanto você estiver lendo esse texto, o sul-matogrossense Gen
Kelsang Togden, de 54 anos, que morou em Curitiba boa parte da vida, estará
provavelmente em silêncio e só. Por cerca de dez dias
começando nesse fim de junho de 2015, a única companhia de Togden será a dos
seus pensamentos, durante o retiro em um mosteiro budista na Inglaterra. Ele
sabe bem o que esperar da experiência. A primeira vez que fez essa profunda
imersão interior foi durante o inverno em uma cidadezinha no Canadá, quando
tinha 32 anos. Durou uma semana e o marcou para sempre.
“Foi impressionante poder ver o meu próprio interior. Tive sonhos
cheios de significado simbólico. Vi e senti coisas maravilhosas e
assustadoras”, recorda-se. “Posso entender perfeitamente por que as pessoas não
gostam da solidão. Elas têm medo do que verão no seu coração, temem
ficar com seus pensamentos. Muitas acham isso insuportável. Assim que estejam
sós precisam ouvir música ou ver televisão. Mas para alguém que busca uma
consciência mais elevada sobre si mesmo e o mundo em que vive, a experiência de
introspecção na solidão é imprescindível”.
Ninguém está só ao se reconhecer na fala do monge Togden – cujo
nome de nascimento é Marcos Bittencourt do Amaral. Evitar estar (e parecer)
solitário talvez seja a maior preocupação das pessoas ao nosso redor
atualmente. E no mundo todo.
Na Coréia do Sul, atores são pagos para comer em frente a uma
webcam, proporcionando aos assinantes do serviço a sensação de ter companhia
durante as refeições. Chama-se “mukbang” – ou “comer e transmitir”. Há
quem pague R$ 49,90 por uma semana do serviço de uma empresa brasileira que
forja namoros virtuais. E sim, existem os que ligam a tevê ou o computador para
“abafar” os próprios pensamentos – eu e certamente você. O fato (e conflito) é
que momentos de solidão não trazem apenas dor, mas
autoconhecimento. Para muitas pessoas, estar só é poder se planejar, ou arrumar
os sentimentos nas “gavetas” – como mostram as histórias ao longo dessa
reportagem.
Saúde pública
Em nossa defesa, podemos argumentar que a solidão mata. É o que
apontam estudos como o do Instituto de Epidemiologia e Saúde da
University College London. Há 15 anos o professor de Psicologia Andrew
Steptoe pesquisa a maior probabilidade de idosos solitários desenvolverem
doenças cardíacas e degenerativas. A equipe de Steptoe determinou uma escala de
solidão, em que contam aspectos como coabitar ou não com alguém, manter contato
(vale até por rede social) pelo menos uma vez por mês com familiares e amigos,
e participar de grupos.
“É um problema porque estamos vendo mudanças na forma em que
vivemos”, disse o pesquisador ao Viver Bem. Ele cita que, no Reino
Unido, um terço das pessoas com mais de 65 anos vivem sozinhas. “Cada vez mais
pessoas de meia idade vivem sós porque os laços de casamento não são tão fortes
e o divórcio é mais socialmente aceito. E existe uma crescente mobilidade da
população, em especial jovens mudando de cidade e de país, e isso é receita
para se ‘fazerem’ mais solitários”. Nem tudo é individual, porém. A tudo isso
soma-se um problema social a ser combatido por governos e sociedade, que é o
isolamento de grupos marginalizados – caso mesmo dos idosos.
Steptoe ressaltou, no entanto, que é determinante para essas
pesquisas considerar a forma com que cada indivíduo encara o hábito de estar
só. É a dor em estar sozinho que leva pessoas a adoecerem, afirma o estudioso.
“Definitivamente algumas pessoas parecem socialmente isoladas – têm poucos
amigos e contato com familiares –, mas não se descrevem como solitários. Nesses
casos, não esperamos que os aspectos negativos se manifestem”.
Peso
Mas isso não parece ser o mais comum. Dos cerca de 900
atendimentos mensais feitos pelo Centro de Valorização da Vida (CVV) em
Curitiba, a esmagadora maioria trata de pessoas infelizes por causa da solidão.
E essa sensação não necessariamente está ligada a isolamento físico. “Notamos
que, ao mesmo tempo em que vivemos uma era de comunicação, as pessoas estão se
distanciando”, afirma Claudiane Araújo, coordenadora e voluntária do centro curitibano.
“Isso aumenta a sensação de solidão. Às vezes as pessoas não estão
sós, têm família e amigos, mas falta acolhimento, falta ouvir”.
O CVV, que atua há cerca de 30 anos na capital do Paraná, não
oferece conselhos, mas tenta fazer o usuário do serviço ter percepções
próprias. É com essa tática que, às vezes, voluntários conseguem fazer uma
pessoa que sofre com a solidão mudar de perspectiva. “Tudo depende de como você
aceita a situação. Às vezes a pessoa só enxerga que o quadro é positivo depois que
passou por aquilo. Creio que é a maturidade emocional que faz com que momentos
solitários sejam bons ou não”, diz Claudiane, que é especialista em gestão. “O
fato é que pode ser uma desgraça ou um aprendizado, mas é preciso passar para
realmente entender”.
Hoje em dia
Então, ainda que a palavra em português que dá sentido positivo
ao estar só – a solitude – seja bem menos usada do que a sua irmã pejorativa –
a solidão –, estar só e se sentir solitário não são sinônimos. Então, de onde
vem esse pavor de que a falta de companhia traga dor, doenças, desesperança?
Para o psicanalista Mauro Mendes Dias, a base de tudo isso está na “elevada
exigência” que as pessoas se forçam para corresponder a expectativas
imaginárias, e mais e mais altas.
Dias lembra que o solitário “infeliz” é alguém que se afasta das
pessoas por achar que não corresponde a ideais físicos e psíquicos – tem alguma
doença, por exemplo. O problema é que essa sensação é cada vez mais típica de
pessoas saudáveis, que a princípio não teriam por que se sentir mal. “Há uma
tendência a tratar a solidão como uma doença, principalmente em nosso momento
histórico marcado pela dominância das imagens e dos ideais estéticos”, reflete.
“Tais ideais fazem das vidas um parecer ser, mostrando o que não se é de fato.
Por isso mesmo estamos habitados por uma profunda fuga da verdade em nosso
cotidiano”.
“A promessa [dos dias de hoje] é de que ninguém estará sozinho
se ficar conectado. Nesse sentido é esperado que a solidão seja catalogada como
doença e condição a ser evitada, já que pelo princípio das imagens e das
conexões ininterruptas, ninguém deve ficar de fora.”
Mauro Dias, psicanalista.
Mauro Dias, psicanalista.
“Quem não consegue ficar bem a sós depende demais dos outros e
vai projetar suas carências nas pessoas ao seu redor: na família, no trabalho,
etc. Isso normalmente cria muitos problemas de relacionamento.”
Gen Togden, 54 anos, monge.
Gen Togden, 54 anos, monge.
Momento de criação para a artista
Autora de uma canção chamada “O Lado Bom [da solidão]”, Zélia
Duncan aprendeu na adolescência o gosto por estar só. “Foi quando
comecei a ouvir música”, conta. “Esperava todos saírem para ter a vitrola só
para mim, coisa rara numa casa de quatro irmãos. Apagava a luz e mergulhava nas
vozes, instrumentos e arranjos. Assim comecei a sonhar em ser artista”.
A letra da música (“Sento no meio-fio dos meus pensamentos / na
beira do que eu invento / e aproveito o lado bom da solidão”) trata da
“percepção de cores e sentimentos que só a solidão proporciona”, diz a cantora.
“Mas também um poema do (Fernando) Pessoa, um verso que diz:
‘sentir é estar distraído’… Achei que tinha a ver com essa solidão boa, de
estar livre para sentir tudo. E fiz a letra”.
Momentos de solidão são essenciais, diz Zélia. Para descansar
olhos ou ouvidos ou para criar, no caso dos artistas. “A solidão escolhida não
tem sofrimento, não te vitimiza. Devemos nos orgulhar dela. Não saber ficar
sozinho é muito triste, creio eu. É mal conseguir ler um livro”, afirma. Para
ela, essa impaciência é fruto de um mundo cheio de “chamados, ruídos, vaidade e
necessidade de se mostrar”. “Vivemos nesse mundo de estímulos externos, de
depositar na mão do outro a sua vida, o seu divertimento. Parte grande do
público entra no teatro, cruza os braços e diz: ‘divirta-me’. Mas e você, o que
trouxe?”
“É preciso saber estar só para poder estar com alguém. Não
esperar que o outro supra esse vazio de sermos únicos, pois afinal, esse vazio
é comum a todos e nos une também.”
Zélia Duncan, cantora e compositora de “O Lado Bom (da Solidão)”.
Zélia Duncan, cantora e compositora de “O Lado Bom (da Solidão)”.
Tempo para pensar durante o luto
O senso comum diz que é preciso “chegar ao fundo do poço” para
enxergar luz. Assim Rosangela Cassiano, de 49 anos, vê um momento solitário da
sua vida, uma época em que ela se isolou e não quis ver ninguém. Foi pouco
depois da morte do filho, em 2004, em um acidente de trânsito. Era a primeira
vez que lidava com o luto, e ela sentia que as pessoas não tinham nada a dizer.
“Tudo o que elas falavam era para me calar. E eu queria chorar”,
lembra-se. Hoje Rosangela vê esse período a sós com os próprios pensamentos
como um mergulho difícil, mas essencial para enfrentar a situação. O que é
surpreendente, visto que todos os pensamentos eram negativos. “Eu ruminava e só
vinham coisas ruins. Era autodestrutivo”.
Até que ela começou a organizar as ideias. Sozinha, passou a
conversar consigo mesma. “Uma coisa que aprendi é a escrever, fazer listas do
que faz bem e do que poderia me deixar melhor”, diz. “A princípio veem mil
coisas ruins para duas, três boas. Aprendi a focar nas boas, mesmo sendo
poucas. Começava a construir, a viajar”.
Hoje coach de pessoas enlutadas em São Paulo, ela está
acostumada a mostrar os dois lados da moeda para quem a procura. Foi o caso da
mulher que contou ter medo de ficar sozinha em casa depois que o filho mudasse
de país. “Perguntei a ela o que faria sozinha em casa. Ela começou a pensar em
coisas como viajar, em hobbies que a interessavam e que não fazia porque estava
sempre centrada no filho”.
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