O que seria
do mundo (e de nós) se os nazistas tivessem vencido a guerra?
A Alemanha venceu a Segunda Guerra Mundial. E
agora, o que acontece? Série retrata como seria a vida num Estados Unidos
imaginário, dominado pelos nazistas e pelo Japão imperial. Para críticos, trama
pode servir de alerta num momento que tom das vozes xenófobas está mais alto
Donald Trump, pré-candidato
republicano à Casa Branca, exigiu uma proibição de entrada para muçulmanos nos
Estados Unidos. Outros de seu partido reivindicaram uma restrição de acesso
para refugiados da Síria. Na França, a legenda anti-islâmica Frente Nacional,
comandada por Marine Le Pen, ganhou as eleições regionais no último domingo.
Muitas das manchetes dos atuais noticiários lembram o capítulo mais obscuro da
história do século 20: a ascensão do nazismo.
Talvez essa situação
politicamente explosiva explique por que O homem do castelo alto, adaptação para a TV do romance
homônimo, tenha provocado reações tão fortes no público americano. O programa –
ainda sem data de estreia no Brasil – conta a vida num Estados Unidos
imaginário, dominado pela Alemanha nazista e pelo Japão imperial.
Eles haviam vencido a
Segunda Guerra – esse é o cenário de horror no filme. A Amazon Studios,
produtora da série, sentiu na pele a dificuldade de abordar esse assunto. Os
símbolos de inspiração nazista, que foram colocados nos vagões do metrô de Nova
York para divulgar o lançamento da série, tiveram de ser retirados depois de
protestos públicos.
Quem assistir a O
homem do castelo alto (The man in the high castle)
vai ter um susto desagradável: em centenas de cenas do seriado de dez
capítulos, o estilo de vida americano é ameaçado por símbolos totalitários – e
pelas ações subsequentes. Mas é exatamente isso que é tão fascinante na
produção: ela mostra como a xenofobia pode fazer parte do cotidiano, antes que
se chegue a perceber o seu triunfo.
Em entrevista à Deutsche
Welle, tanto Inkoo Kang, crítica de televisão da influente revista
nova-iorquina Village Voice, quanto Ilya
Somin, articulista do jornal The Washington
Post, afirmaram que a série prova que as pessoas poderiam muito bem
se acostumar com tudo.
Natureza x educação?
Na distopia proporcionada
pelo seriado, os nazistas dominam a costa leste dos EUA, enquanto os japoneses,
a oeste. Os americanos vivenciam instituições totalitárias e ações de limpeza
étnica. Numa cena que atraiu particularmente a atenção dos críticos, cinzas de
um crematório pairam sobre uma autoestrada, levando um policial a observar
secamente: “Às terças-feiras, queimam deficientes físicos e doentes terminais –
um fardo para o Estado.”
Na tentativa de explicar
como o horror ininterrupto pode se tornar normalidade, Kang aponta: “Hoje é
possível dizer que não temos a violência patrocinada pelo Estado, como na forma
de eugenia institucionalizada. Mesmo assim, há muito injustiça em todas as
partes de nosso país, e não achamos nada de errado nisso.”
Somin é advogado e, nessa
função, também se ocupa do conteúdo político das obras de ficção científica e
fantasia. Para ele, a série parece supor que “dependendo das circunstâncias, as
pessoas podem se tornar seguidores de regimes opressivos e injustos em todo
tipo de sociedade”.
Ressonância da vida real
O seriado O
homem do castelo alto– baseado no romance homônimo de Philip K.
Dick, da década de 1960 – acompanha as aventuras da heroína Juliana Crane
(interpretada por Alexa Davalos) num movimento de resistência clandestino e
relata as consequências das ações da protagonista para sua família e amigos.
Segundo Somin, os dois regimes xenófobos contra os quais ela luta – o Japão
imperial e a Alemanha nazista – lembram a atual campanha eleitoral de Donald
Trump.
Mesmo antes de suas recentes
declarações exigindo a proibição de entrada de muçulmanos, o pré-candidato
republicano pediu a construção de um muro para conter a entrada de mexicanos,
como também um banco de dados para poder monitorar melhor os muçulmanos nos EUA.
“A série funciona como um
eco dos acontecimentos reais na Europa e nos EUA”, afirmou Somin, em alusão a
Trump, Marine Le Pen e ao primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, que ergueu,
de fato, uma cerca em torno de seu país – por medo de refugiados.
O articulista do Washington
Post considera, no
entanto, pouco realista a rapidez com que alguns personagens do seriado de TV
americana, que se passa 12 anos após o fim da Segunda Guerra, aceitaram o
regime de ocupação. Em sua opinião, o ceticismo de uma nação diante de uma
mudança de regime duraria mais tempo.
“Mesmo que Trump seja eleito
e tente montar o seu banco de dados para muçulmanos ou coisa parecida, acredito
que, ao menos por algum tempo, essas medidas seriam motivo de controversas
discussões”, opina Somin. Para ele, somente uma vitória eleitoral não seria
suficiente para impor essas mudanças na sociedade – assim como a eleição e
reeleição de Obama não foram suficientes para ancorar o Obamacare, a reforma do
sistema de saúde, entre os americanos.
Kang afirma ver semelhanças
entre os controversos pré-candidatos presidenciais e movimento de resistência
na série. No seriado, o grupo de resistência está em busca constante de filmes
misteriosos, que parecem representar um mundo no qual os aliados haviam ganhado
a guerra, não os países do Eixo – uma fonte de esperança que inspira Juliana a
desistir da vida que leva, para lutar na clandestinidade.
Kang diz reconhecer nos
principais personagens da série americana uma tendência para o “derrotismo
nacionalista”, logo que se comparam com alemães ou japoneses. De acordo com a
crítica de televisão, isso lembra a mensagem de Trump de que os eleitores
deveriam “tornar novamente os EUA uma grande nação”, diante da alegada ameaça
por parte de migrantes não brancos.
Mensagem de compaixão
“Na série também é
construída um tipo de fantasia romântica, segunda a qual seria possível mudar
facilmente a atitude de qualquer pessoa”, explica Kang sobre a reação de
Juliana ao filme clandestino. “Isso não quer dizer que a série é ruim. Ela quer
justamente ser um exemplo inspirador de como as pessoas podem se tornar
melhores pensadores e, assim, melhores eleitores.”
Desde que O
homem do castelo alto começou
a passar nos EUA, no fim deste ano, inúmeros artigos na mídia americana e
alemã, entre outras, tentaram desvendar um significado mais profundo no
seriado. Da mesma forma que o serviço de streaming rival Netflix, a Amazon não
divulgou até agora os números de audiência. Ainda não se sabe se a série vai se
estender numa segunda temporada.
Mas uma coisa é certa: com a
sua investigação profunda da influência de regimes e espíritos totalitários,
como a xenofobia, em pessoas normais, O homem do castelo alto já atraiu a atenção.
“Eu acredito que há na série
um apelo por mais humanidade – que precisamos muito mais diante dos
acontecimentos do nosso tempo”, comenta Kang.
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